Lucas Dourado, Haley Guimarães e Helinho Medeiros (foto de Rafael Passos)
Eu queria que a minha retrospectiva 2013 falasse de uma força transformadora. Isso porque 2013 foi um ano de transformações. E estas ocorrem em níveis múltiplos. E porque ocorrem, de maneira geral, através destes que consumo, achei por bem dividi-los. Elegi discos paraibanos lançados este ano aqui na Parahyba para contar destes 365 dias e seis horas. E poderia falar de muitos que aconteceram por aqui neste período, porque som não faltou, mas busquei uma concisão que me garantisse alguns leitores. Falarei, portanto, de três. Para além de serem da terrinha, eles têm um tanto mais em comum: representam uma nova fase no fazer musical de cá e oferecem não um punhado de canções, mas uma experiência sonora e literária - justamente o que busco oferecer enquanto autor e beber enquanto consumidor.
Tracklist:
01 - Coco de Jumenta
02 - Meninos
03 - Fumo do Parrá
04 - Casa da Pólvora
05 - Amassar a Lataria
E, já que é verão (finalmente!), eu começo com o ‘Amassar a Lataria’. O Sonora SambaGroove não é novidade nos palcos nossos (quem lembra do CINEPORT em 2011 ou do Festival de Areia de 2012?) e, ainda no primeiro semestre de dois mil e treze, brindou-nos com este EP que soa como cerveja gelada para os meus ouvidos. No ano passado essa turma pôs no mundo o EP ‘Gentileza’, o primeiro do que pode vir a ser uma série de produtos que se debruçam sobre a música autoral paraibana, batizado após a canção homônima de Arthur Pessoa. ‘Gentileza’ foi um brinde, responsável por trazer a tona a faceta compositora do vocalista da Cabruêra, dar-nos também a ‘Cigana’ nervosa do preciso e precioso baterista Nildo Gonzalez e ainda surpreender com uma inédita do veterano Adeildo Vieira. ‘Amassar a lataria’ não fica pra trás nesta empreitada de salvaguardar nosso vasto e denso repertório: Parrá vem brilhar na voz de Chico Limeira e Totonho não deixa ninguém indiferente na voz de Débora Malacar. O EP ainda vai mais longe e bebe nos discos do Tocaia da Paraíba e do Assaltarte – deste último saindo a minha faixa preferida, ‘Meninos’, com umas congas insuspeitadas do hábil Macaxeira Acioly. E por falar em congas, antes fosse este EP bem-sucedido apenas como resultado de uma pesquisa profundamente afetiva; é também um deleite sonoro. Onde tocar Fabiano Furmiga pode olhar pros lados que estarei. Daniel Vincent, também paraibano, é quem assina a capa de cores vivas e diretas. Apesar do hiato de alguns meses após o impecável show de lançamento do EP, a Sonora voltou com tudo na primeira edição de shows do MUSIC FROM PARAHYBA, coletânea organizada pela Divisão de Música da FUNESC visando festivais internacionais. Olhos e ouvidos abertos pra essa turma, que eles não brincam em serviço.
Tracklist:
01 - A Saga
02 - Tambaú
03 - O Santo da Grande Luz
04 - Barbante Prateado
05 - Motor Misterioso
06 - Temparada
07 - Idas e Vindas
08 - Saravá e Quengo
09 - O Cheiro e a Feira
Eu também não poderia ignorar as douradas engrenagens do ‘Motor Misterioso’. Em sua estreia, Lucas Dourado oferece aos ouvidos de quem escuta uma curiosa experiência lírica. Saltam aos meus olhos uma qualidade deliciosamente prosaica nas letras de cada canção e, ao mesmo tempo, rimas inusitadas e terrivelmente coerentes revelam no compositor um leitor e um re-leitor atentos. E coerente é também a articulação de um discurso que atravessa tudo que se diz nas canções. Os versos, assinados tanto pelo próprio Lucas quanto por Polly Barros, nos propõem uma perspectiva nitidamente inquieta do que nos povoa – côncavo/convexo, povo das estrelas, almas em barbantes, chão rachado, menino, feira, pé, bike e avião. Sua poesia, se não explode, está prestes a. Há também um belo poema de Renálide Carvalho, ‘Idas e Vindas’, de onde brotou em Lucas uma melodia inacreditavelmente natural. As harmonias encontram nos dedos de Helinho Medeiros e Haley Arthur uma parceria sólida; ora arrepiam, ora surpreendem. O disco, inclusive, conta com uma turma da pesada que fez nascer esse disco lá na Mutuca do Burro Morto, dos quais destaco Ruy José, Big Daniel, Uirá Garcia e Chico Limeira, pra não mencionar o violão do próprio Lucas. Mas o que me deixa sem sono mesmo no som desse baiano-muito-nosso é a melodia. Num papo que tivemos, ele, Toninho Borbo e eu, o Golden falou-nos de um raciocínio alinhado com o jazz que ele persegue na construção das frases melódicas, identificável sobretudo no ‘Barbante prateado’. Como que para ilustrar seu pensamento, cantou-nos a música toda a capela. Sim, porque Lucas é também um grande cantor, de voz clara como quem sabe o que quer. A capa é uma bela foto de Rafael Passos, a qual se soma a arte generosa de Sílvio Sá. Parte do repertório do Motor estreou em Abril deste ano com versões minimalistas d’A Troça Harmônica, fato que é motivo de orgulho e satisfação pra minha pessoa, e 2014 deve levar o restante das canções para o palco (uhuuu!) com parte do time que acompanhou o Golden nos períodos de gravação. Três palavras definem: mal posso esperar!
Tracklist:
01 - Elbow Pain
02 - La Edad del Futuro
03 - Birds Singing Lies
04 - Lucid Dream
05 - Sophie
Naturalmente, eu não poderia deixar de mencionar o fenômeno pop que é o duo Glue Trip. Quando do lançamento online da primeira faixa do que viria a ser o ‘Just Trippin’, seu EP de estreia, chamou-me a atenção a fina ironia dos títulos. Fazer do pé-da-letra uma ferramenta poética requer apropriação e domínio da linguagem, e fazê-lo num idioma estrangeiro é, no mínimo, ousado – as letras, em língua inglesa, só são possíveis porque se conjugam, a um tempo, os verbos rigor e despojamento. A viagem de cola começa com uma finíssima dor-de-cotovelo e, desde ela, fica muito latente uma força que atravessa o repertório inteiro. Para explicar o disco, Ernani Sá faz uma analogia com a observação de Abraão, que diz que, nos tempos de hoje, um publicitário tem apenas cinco segundos (justamente aqueles antes de pularmos o plim-plim pra ver qualquer vídeo no Youtube) pra prender a atenção de quem quer que seja. E seria justamente esta a tal força de ‘Just Trippin’: uma qualidade poderosíssima de refrão nas estruturas propostas nas melodias e nas harmonias. Não foi à-toa que a banda, antes mesmo de dar a nós conterrâneos o privilégio de vê-los em ação, foi estrear lá no SESC Pompéia; sua música cruza as distâncias como um raio, e caiu sobre mim de maneira arrasadora. Após vê-los no Indie Sessions, lá na Vila do Porto, me vi completamente contaminado. Corri para a internet e escrevi pra Lucas e Phil e não sosseguei até que ‘Elbow Pain’ virasse o toque do meu celular. E quantas vezes já não me vi cantarolando as melodias todas enquanto caminho nas ruas dos Bancários? Eu devo ainda destacar mais duas faixas: ‘La edad del futuro’, na qual Sergio Aires põe os ouvintes pra flutuar com sua flauta. Esta faixa, talvez pelo magnífico loop da primeira parte da melodia, é com certeza a representante mais forte da qualidade de refrão à qual me referia. E destaco ainda ‘Birds singing lies’ pela ousadia no uso dos samples de cantos de pássaros – a música popular se utilizando dos ruídos de maneira muito mais eficaz que a música erudita, vejam só. E tenho certeza que nenhum dos falsetes, reverbs, delays e elementos afins seriam possíveis ou prováveis sem a magia de Pepeu Gúzman, da Mardito Discos. A bela capa do EP, que foi lançado em etapas nas interwebs, também é assinada por Daniel Vincent. Glue Trip veio mostrar que não é preciso ranço ou receio ao se referir ao pop enquanto linguagem, e inaugura também uma bem-sucedida e brilhante estratégia de divulgação do seu trabalho. E que, às vezes, bastam apenas três ou quatro acordes.
É. Eu não sabia se conseguiria cometer esse texto a tempo de fazê-lo acontecer enquanto ainda temos um pé no ano ímpar, mas parece que consegui. E eu concluo dizendo que foram estes os sons que fizeram meu ano especial (música serve pra isso!) e, por isso, sou grato. Eu, que me ocupo de jogar umas quantas palavras ao vento, pretendo agradecê-los como posso. Fica registrado, neste parágrafo, a vontade de trabalhar com todos os mencionados que ainda não trabalhei – e de trabalhar mais ainda com quem já pude dividir um pouco do que ando fazendo! Aos que fazem girar a roda da boa música local eu quero e espero poder agregar. E em 2014, eu só posso desejar tudo de som. As esperanças são as melhores, e despontam no horizonte com o disco de Rinah Souto, previsto ainda para o primeiro semestre. Mas aí já são outros 365 dias e 6 horas... Avante!
Texto de Gustavo Limeira
Pra baixar, clique na capa dos discos.